Entre o sagrado e o profano: a história por trás da Igreja do Sagrado Coração de Jesus em Lisboa

Como marco da arquitetura religiosa contemporânea de Portugal, a Igreja do Sagrado Coração de Jesus opõe-se formalmente aos modelos tradicionais representando uma obra livre de estigmas historicistas. Fruto de um concurso de projeto organizado em 1960, ela se destaca por sua dimensão cívica, pelo papel urbano e pelo seu significado antimonumental e social. Ao integrar-se na malha regular do bairro das Avenidas Novas, este exemplar do Movimento de Renovação da Arte Sacra (MRAR) faz parte de um complexo paroquial maior que passa despercebido ao transeunte. Sua rua exterior cria um espaço público inesperado, convidando à entrada e à integração num adro onde arquitetura e cidade se fundem. Finamente trabalhada em termos de espacialidade, detalhes e luz, a Igreja reserva muitas surpresas a quem nela adentra.

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São essas características únicas que fizeram com que a Igreja do Sagrado Coração de Jesus fosse incluída na 13ª edição do festival Open House Lisboa, intitulada “Projetos híbridos para espaços de transição”. Como parte do programa Open House Europe 2024, esse evento incluiu visitas gratuitas a 74 obras, trazendo à tona as mudanças que Lisboa sofreu ao longo do tempo.

A inclusão no festival também se deve ao fato que de, apesar de ser considerada uma das obras arquitetônicas mais significativas do último meio século em Portugal, paradoxalmente, é uma das menos conhecidas entre os portugueses e uma das menos lembradas entre os arquitetos. O que, na verdade, pode ter sido um dos propósitos dos arquitetos Nuno Teotónio Pereira, Pedro Vieira de Almeida e Nuno Portas quando produziram uma obra tão diluída no espaço urbano de Lisboa, que passa quase despercebida, ao mesmo tempo em que representa o verdadeiro significado da cidade.


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Igreja Sagrado Coração de Jesus ©Rui Cavaleiro

Diferentemente da concepção tradicional de projetos religiosos, a Igreja do Sagrado Coração de Jesus não é um volume singular rodeado por um vazio, mas uma intricada forma conectada diretamente ao seu entorno urbano, marcada por uma escada-rua que distribui e conecta simultaneamente privado e público, sagrado e profano. Inserido em pequeno terreno rodeado por edifícios altos, o projeto trabalha os diferentes níveis por meio de plataformas sobrepostas que conectam o santuário e o batistério abrindo um caminho de escala humana. Essa organização complexa buscou valorizar os frontões dos edifícios existentes, por isso, tanto a Igreja quanto o Centro Paroquial foram construídos na borda do terreno e em vários níveis, permitindo uma área central aberta. O cemitério, por sua vez, está situado acima do nível da rua. Tais soluções impediram que o pátio e o cemitério se tornassem muito pequenos, classificando o projeto como um “encaixe engenhoso”. Sua relação com a cidade, no entanto, transcende a forma física e se materializa também no programa, o qual conta com espaços destinados a comunidade como uma biblioteca e um salão de 600 lugares para atividades culturais, algo inovador principalmente no contexto dos anos 60.

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Igreja Sagrado Coração de Jesus ©Rui Cavaleiro

O projeto foi fruto de um concurso organizado pelo MRAR – Movimento de Renovação da Arte Religiosa. Fundada em 1953, essa iniciativa reunia arquitetos, artistas plásticos e historiadores empenhados em conferir aos edifícios religiosos de Portugal uma maior dignidade e qualidade plástica, opondo-se formalmente à manutenção dos modelos tradicionalistas. O MRAR pretendia criar uma arquitetura religiosa contemporânea, renovada, livre de estigmas historicistas, combatendo assim o “falso tradicionalismo” e o “falso modernismo” das construções da época, de modo a resultar em uma maior simplicidade e clareza dos espaços sagrados. O apogeu deste movimento é, sem dúvida, a Igreja do Sagrado Coração de Jesus.

O concurso recebeu 66 inscritos, revelando o interesse grande em torno da nova igreja da capital. No entanto, restaram apenas 14 propostas aptas para a avaliação, um elevado grau de desistência justificado pela complexidade do programa e do terreno. Nesse contexto, o projeto escolhido conseguiu refletir uma "linguagem autêntica, destacada pelo movimento dos elementos estruturais conjugados com a distribuição da luz", como o próprio júri afirmou na ata de julgamento. Outro aspecto que o júri considerou fundamental foi o estudo minucioso das circulações e percursos dos cortejos, reforçando a percepção de que “este anteprojeto revela conhecimento profundo do tema e apresenta um conjunto de qualidades arquitetônicas que constituem garantia segura da realização de uma obra de grande valor”. No decorrer do projeto e da construção, o pátio permaneceu como o espaço central de boas-vindas. Embora a igreja e o centro paroquial tenham mudado, tornando-se mais regulares, o novo quadrilátero aberto e a área coberta adjacente são frequentemente identificados.

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Igreja Sagrado Coração De Jesus ©joseMartins

Rompendo com a tradição religiosa, o projeto recuperou o modelo da primitiva igreja românica, fomentando a relação entre o espaço religioso e a comunidade envolvente, que é ainda mais reforçada pelo caráter urbano e despojado que o concreto aparente lhe confere. Este material, que costuma ser visto como bruto e agressivo, na Igreja ganha um caráter refinado e elegante, resultado de um trabalho de detalhamento cuidadoso. Embora sua superfície seja rugosa, ao ser contemplado como um todo, transmite uma sensação de delicadeza inesperada. Como uma escultura feita a partir de um bloco, a igreja também oferece espaços com diferentes graus de intimidade criados através de geometrias repletas de fluidez e dramatizadas com o domínio da luz. No entanto, para além das escolhas formais e materiais, os arquitetos conseguiram fazer com que esta igreja se articulasse com os edifícios envolventes de grandes dimensões e sobretudo, que dialogasse intimamente com a cidade, integrando-se perfeitamente na malha de Lisboa, convidando assim o urbano a participar do espaço que é sagrado.

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Igreja Sagrado Coração De Jesus ©joseMartins
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Igreja Sagrado Coração De Jesus ©joseMartins

Este artigo faz parte de uma série do ArchDaily com foco em projetos construídos exibidos em várias edições do Open House Europe, destacando sua relação com suas cidades, entorno, materiais ou programas. Como sempre, no ArchDaily, agradecemos contribuições de nossos leitores. Se você quiser sugerir ou enviar um projeto específico, entre em contato conosco.

Este recurso faz parte de uma série do ArchDaily intitulada Narrativas AD, onde compartilhamos a história por trás de um projeto selecionado, mergulhando em suas particularidades. Todo mês, exploramos novas construções ao redor do mundo, destacando sua história e como elas vieram a existir. Também conversamos com o arquiteto, construtores e comunidade, buscando destacar suas experiências pessoais. Como sempre, no ArchDaily, valorizamos muito o feedback de nossos leitores. Se você acha que deveríamos apresentar um determinado projeto, por favor, envie suas sugestões.


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Sobre este autor
Cita: Camilla Ghisleni. "Entre o sagrado e o profano: a história por trás da Igreja do Sagrado Coração de Jesus em Lisboa" 12 Set 2024. ArchDaily Brasil. Acessado . <https://www.archdaily.com.br/br/1020635/entre-o-sagrado-e-o-profano-a-historia-por-tras-da-igreja-do-sagrado-coracao-de-jesus-em-lisboa> ISSN 0719-8906

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